ARTIGOS

I Fórum de Debates

ECOLOGIA DA PAISAGEM E PLANEJAMENTO AMBIENTAL

 

MAPEAMENTO DE POPULAÇÕES DE PRIMATAS NO CURSO MÉDIO-SUPERIOR DA BACIA DO RIO AIURUOCA (MG).

 

Cavallini, M.M.1; Pires, J.S.R.2 & Nordi, N.3

1PPG - Ecologia e Recursos Naturais / UFSCar

2Lab. de Análise e Planejamento Ambiental / DHB / UFSCar

3Lab. De Ecologia Humana e Etnoecologia / DHB / UFSCar

Apoio: Capes / WWF - Brasil

 

INTRODUÇÃO

A perda de biodiversidade em tempos recentes tem sido objeto de grande preocupação entre os diferentes setores das Ciências Biológicas. Atualmente reconhece-se que apenas a implantação de Unidades de Conservação, na condição de parques e reservas, dificilmente será solução integral para o problema de extinção de espécies e perda de biodiversidade (SPELLENBERG, 1992; HARRIS, 1984). Devido ao seu número e extensão reduzidos, as Unidades de Conservação de Uso Indireto, que no Brasil abrangem 3% do território, muitas vezes são insuficientes para manter a integridade dos componentes de biodiversidade nelas contidos (FONSECA et al., 1997). Uma vez que razões sociais, políticas e econômicas limitam a quantidade de ambientes que podem ser protegidos em Unidades de Conservação, os esforços para a manutenção de diversidade biológica devem incluir áreas fora destas, abrangendo o meio rural.

Neste sentido, as áreas circundantes às Unidades de Conservação devem ser um complemento essencial para assegurar proteção à diversidade biológica (Resolução CONAMA No 13/90). Na realidade, deve-se buscar um padrão de uso e ocupação do solo que propicie maior conservação dos recursos naturais, mantenha as importantes funções desempenhadas pelos ecossistemas presentes e dê condições ao estabelecimento da fauna e flora nativas.

O presente trabalho teve como objetivo a caracterização e avaliação de uso e ocupação do solo na porção médio-superior da bacia hidrográfica do rio Aiuruoca, parte da zona de entorno do Parque Nacional do Itatiaia. Objetivou também, determinar preliminarmente a distribuição espacial das populações das espécies de primatas ocorrentes na região, contribuindo para o planejamento e ações que visem a conservação dos recursos faunísticos na área considerada.

 

METODOLOGIA

A caracterização da composição paisagística da região foi realizada através da análise de imagem de satélite (LANDSAT TM5 - 13/08/97) e aprimorada por reconhecimentos em campo. Informações sobre relevo e hidrografia foram obtidas a partir da digitalização das cartas topográficas fornecidas pelo IBGE (Folha Agulhas Negras e Alagoa - 1:50.000). Os softwares utilizados para a caracterização foram os Sistema de Informações Geográficas: IDRISI for Windows (v.2.0), Tosca (v.2.0) e MapInfo Professional (v.4.1).

Para o mapeamento preliminar das populações de primatas utilizou-se do conhecimento da população local que habita a região por várias gerações. Através de um gravador portátil foi apresentado aos informantes a vocalização das seguintes espécies de primatas: Callicebus personatus e Cebus apella (Cebidae), Callithrix sp (Callitrichidae), Alouatta fusca e Brachyteles arachnoides (Atelidae). Caso o informante reconhecesse a vocalização do animal, era-lhe perguntado sobre o(s) local(is) de ocorrência daquela população, a última vez que tinha sido visto ou ouvido, bem como informações sobre a biologia comportamental da espécie. Foram entrevistados 95 moradores ao longo da área de estudo.

 

ÁREA DE ESTUDO

Na bacia hidrográfica do rio Aiuruoca em seu curso médio-superior, o relevo é fortemente determinado pela formação geológica da serra da Mantiqueira e as cotas altimétricas variam de 1100 a 2500 m de altitude, sendo revestida por vários andares de vegetação remanescente. Assim, nas cotas inferiores observa-se a Floresta Estacional Semidecidual Sub-montana, sujeita a inundação periódica nas áreas com baixa declividade e próxima ao leito dos maiores rios. Segue-se a formação Montana e Alto-montana, normalmente contendo exemplares de Araucária angustifólia em grande número, caracterizando formações de Floresta Mista. Por fim, nas maiores altitudes e em solos rasos e pedregosos, nota-se os Campos de Altitude característicos da Mantiqueira, com sua vegetação rala e baixa, mas com um número significativo de espécies endêmicas. O clima da região é do tipo mesotérmico brando e úmido, com 3 meses de duração para o período seco (jun/jul/ago). A precipitação anual varia de 2000 mm, próximo ao espigão do Itatiaia, a 1600 mm, na porção setentrional da área considerada (RADAMBRASIL, 1983). O fenômeno de geada é também muito comum, sendo de 5 a 20 dias sua ocorrência durante o ano. Convém ressaltar que a bacia hidrográfica do rio Aiuruoca inclui uma pequena parte do Parque Nacional do Itatiaia e está quase totalmente incluída na APA Federal da Serra da Mantiqueira.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A bacia hidrográfica considerada neste estudo totaliza uma área de 48.738,60 ha e apresenta uma rica densidade de drenagem (2,37 km/km2). Da área total, cerca de 36.30% estão ocupados por pastagens e plantio (uso agropecuário), 54,45% correspondem a áreas com vegetação arbórea (matas) e 9.25% são campos de altitude localizados acima da cota 1700 m (Tabela 1). As áreas de preservação permanente (APPs) situadas a 30 m ao longo dos córregos totalizam 9.230,22 ha, mas apenas 62,79% destas estão efetivamente cobertas por vegetação arbórea.

De maneira geral, observa-se que as áreas contendo matas nativas localizam-se preferencialmente nas maiores cotas altimétricas, bem como em áreas de maior declividade, uma vez que as terras em áreas mais baixas e planas possuem maior aptidão agrícola. Os remanescentes florestais estão distribuídos em 388 fragmentos e possuem área média de 66,74 (±778,88) hectares. Deve-se observar que não foram considerados fragmentos com área inferior a 1 ha que, somados, totalizam apenas 2,17% da área total de cobertura florestal.

Tabela 1: Área das classes de ocupação do solo na bacia hidrográfica estudada.

Área (ha)

Bacia Hidrográfica

48.738.60

* Uso Agropecuário

17690.58

* Matas

26537.31

*Campos de Altitude

4510.71

APPs

17861.13

APPs com Mata Ripária

5796.09

APPs sem Mata Ripária

3434.13

A área de estudo foi dividida em outras sub-unidades, que por sua vez encerram semelhanças, especialmente no âmbito das relações sociais e até de parentesco entre os moradores da região. Delimitam, também, unidades eco-geográficas, sócio-culturais e produtivas particulares. A investigação sobre a distribuição das populações de primatas foi baseada nos principais remanescentes florestais de cada uma destas sub-unidades, que podem abranger um ou mais bairros rurais. A Tabela 2 considera o status de conservação destas espécies.

Tabela 2: Parâmetros de conservação das espécies de primatas consideradas neste estudo.

 

Biodiversitas, 1998

IBAMA, 1992

IUCN, 1994

Callithrix penicilata

---

---

---

Callithrix aurita

Criticamente em perigo

Presente

Ameaçada

Cebus apella

---

---

---

Callicebus personatus nigrifons

Vulnerável

Presente

Vulnerável

Alouatta fusca clamitans

Vulnerável

Presente

Vulnerável

Brachyteles arachnoides

Em perigo

Presente

Ameaçada

A Figura 1 sintetiza os resultados gerados pela totalidade de entrevistas realizadas. Entre os Callitrichidae, todas as descrições mencionadas pelos moradores, assim como três populações observadas pelo pesquisador, determinaram que trata-se da espécie Callithrix penicilata.

"Aqui tem muito. Esses tempos atrás, esse rapaz meu pelejou pra pegar um no bambuzeiro. Mas pega da onde? Que nada... Ele tem manchinha branca na testa." - Bairro da Campina.

"O mico daqui é o estrela. Ele é escuro com uma coroa branca no meio da testa." - Bairro da Pedra

 

Figura 1: Padrão de distribuição espacial das populações de primatas na bacia do rio Aiuruoca

Pôde-se observar uma ampla distribuição desta espécie entre os principais fragmentos de mata da região considerada e nenhuma referência foi obtida para outra espécie deste gênero, mesmo estando a região na interface das áreas de distribuição de C. penicilata e C. aurita.

Entre os Cebidae, a espécie Callicebus personatus também apresenta ampla distribuição, sendo a mais conhecida pela população local. A observação de um indivíduo pelo pesquisador confirmou a subespécie Callicebus personatus nigrifons.

"Os sauás só descem no tempo das águas. No seco é muito difícil ouvir eles." - Bairro Nogueiras.

"Esse é o Sauá... eu conheço. Tempo de chuva eles cantam pra essas serras, tudo esses altos. Época de carvoagem mataram muito desse bicho por aqui. Carvoeiro é uma raça danada... onde chega acaba com as coisa do lugar. Eu falava: - Não caça esse bichinho não, deixa ele. - Que nada! Eles comiam mesmo." - Serra do Garrafão.

Já o Cebídeo Cebus apella apresentou baixa distribuição segundo a metodologia utilizada. Na verdade, é possível que os resultados estejam sub-estimados pois esta espécie apresenta ampla distribuição e capacidade de sobrevivência em ambientes parcialmente alterados pela ação antrópica (AURICCHIO, 1995). Aliado a este fato, o padrão de vocalização de Cebus apella não é tão evidente e nem pode ser ouvido a grandes distâncias, fazendo com que algumas populações naturais passem desapercebidas pelos moradores da região.

"O macaco é maior que o Sauá, é escuro. É mais esperto também." - Bairro Nogueiras

"O macaco, se você fizer uma roça de milho na serra, ele apanha pra levá pros filho. Ele amarra uma palha na outra, forma aquele rosário e leva." - Bairro Matutu.

A família Atelidae apresenta-se com distribuição notadamente restrita na região estudada. Populações do bugio Alouatta fusca apenas foram determinadas em alguns fragmentos da porção leste da bacia (Bairros do Guapiara e Gomeira) e presume-se que tenha havido extinções locais nos últimos 20 anos em outros lugares, segundo os moradores mais antigos (Bairros do Pantano e Condado). Já na vertente oeste da bacia do Aiuruoca, nenhum morador reconheceu o inconfundível padrão de vocalização desta espécie, fazendo crer que aqui as populações foram extintas há várias décadas.

"A fêmea (do bugio) fica limpando a baba do macho. Ele faz um estrondo, até assusta a gente. Parece assombração." - Bairro da Campina.

"O povo fala que o bugio faz esse estrondo por causa dum copo que ele tem, bem no papo (alusão ao osso hióide). Quando ele faz esse barulho, ele tá chamando chuva." - Bairro Guapiara.

"Eles (bugio) não é de anda muito não. Mato que eles fica, é naquele lugar mesmo. Eles não é de saí de um mato pra outro não. Ele gosta de fruta, folha de mato..., tem as épocas. Cada árvore da uma qualidade de fruta, né? Quando uma acaba, já vem outra qualidade de fruita, aquela acaba... vem outra. E aí vai. E quando não existe fruita de jeito nenhum, sacode nas folha, casca de pau, gargatá. " - Alto do Gomeira.

Ainda com relação aos Atelídeos, obtiveram-se fortes indícios da presença de uma população de Brachyteles arachnoides em uma área de mata contínua às matas presentes em Gomeira, porém já fazendo parte da bacia do rio Grande em seu curso superior.

"Ah, já vi o mono, sim senhor; várias vezes. Aqui mesmo, numa tal que tem ali, encontrei com ele muitas vezes, mas eles mudaram. Ele não gosta de ficar onde lida com gente, não. Só lugar que não lida ninguém. Ele é bonito, um bichão grande, cor de café com leite. E anda de manada grande... 10, 20." - Alto do Gomeira (virada para Santo Antônio).

O monocarvoeiro está entre as espécies de primatas brasileiros com maior perigo de extinção. A confirmação da presença desta população pelos pesquisadores pode trazer importantes contribuições para a preservação desta espécie, cujas populações remanescentes têm sido catalogadas (AURICCHIO, 1995; BIODIVERSITAS, 1998)

Por último, este trabalho ilustra as inúmeras possibilidades de aplicação do uso de SIG em estratégias de análise, planejamento ambiental e conservação de recursos naturais. No presente estudo, o mapeamento das populações de primatas baseado na obtenção de informações etnoecológicas permite direcionar estratégias de recuperação de matas e áreas prioritárias para a implantação de sistemas agroflorestais segundo propostas já elaboradas para a região (CAVALLINI, 1997), visando a manutenção de biodiversidade como suporte ao desenvolvimento rural sustentável.

 

AGRADECIMENTOS

Os autores deste trabalho gostariam de expressar seus agradecimentos ao WWF - Fundo Mundial para a Natureza pelo financiamento cedido ao projeto de pesquisa, bem como aos moradores da região pela confiança e amizade estabelecidas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AURICCHIO, P. Primatas do Brasil. UnG. São Paulo, 168p. 1995.

BIODIVERSITAS. Livro Vermelho das Espécies Ameaçadas de Extinção de Minas Gerais. Fundação Biodiversitas. Belo Horizonte, 356p. 1998.

CAVALLINI, M.M. Estudos sócio-ecológicos em uma comunidade rural situada ao sul do estado de Minas Gerais: subsídios ao manejo ambiental em pequenas propriedades. São Carlos, UFSCar, Dissertação de Mestrado. 133p., 1997.

FONSECA, G.A.B., PINTO, L.P., RYLANDS, A.B. Biodiversidade e unidades de conservação. . Anais do I Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação. Curitiba, PR. Vol. I. 1997.

HARRIS, L.D. The fragmented forest. Chicago Press, 211p., 1984.

IUCN - Red List Categories. The world conservation union species survival commission. Gland, Switzerland, 21p., 1994.

RADAMBRASIL. Levantamento de Recursos Naturais. Folhas SF.23/24. Vol 32. Ministério das Minas e Energia, Projeto Radam Brasil, 1983.

SPELLERBERG, I.F. Evaluation and assessment for conservation. Chapman & Hall, London, 260p., 1992.