ARTIGOS

I Fórum de Debates

ECOLOGIA DA PAISAGEM E PLANEJAMENTO AMBIENTAL

 

IMPACTOS AMBIENTAIS EM PAISAGENS URBANAS: SUBSÍDIOS À UMA NOVA URBANIZAÇÃO1

 

Pompeu Figueiredo de Carvalho

Professor Livre Docente do Deplan/IGCE-Unesp, Rio Claro (SP)

 

É notório que um dos maiores impactos causados pelos artefatos culturais na natureza é o da implantação das cidades, principalmente, nas escalas nas quais se realizam hoje no mundo tropical.

Ao analisar as fases do ciclo hidrológico, evaporação, condensação, precipitação, escoamento e infiltração, pode-se evidenciar a grande modificação que as cidades causam no meio ambiente, embora muitas vezes já impactado por outras práticas humanas, como a agricultura em seus variados graus de intensidade. O relevo e seus constituintes: declividade, espessura de solos, hidrologia, em relativos estágios de equilíbrio, com a importação de matéria e energia assumem uma nova dinâmica, nem sempre convergente com os propósitos humanos. Pode-se estudar esta questão, por exemplo, analisando-se, os sistemas fluviais e, principalmente, as várzeas, componentes tão importantes nos geossistemas tropicais.2

Com a crescente submissão ao modo capitalista de produção, a terra passa a ter valor, isto é, permite-se ao proprietário participar da renda do processo produtivo. Terras antes inadequadas à urbanização, devido à sua vizinhança urbana, passam a ter um grande potencial de se prestar à acumulação capitalista, resultante da apropriação das economias de aglomeração, da mais-valia relativa.

O processo de urbanização se aliena crescentemente do funcionamento da rede de drenagem dos ecossistemas. Por exemplo, com a urbanização, aumenta-se o escoamento superficial das águas pluviais e diminui-se o seu tempo de concentração, mas esdruxulamente diminuem-se e extinguem-se os canais de drenagem natural, através da destruição de várzeas, leitos maiores dos rios, que inclusive são ocupados pela própria urbanização. Altera-se significativamente o equilíbrio dinâmico da paisagem com a destruição das várzeas que têm a função de receber as águas de estações chuvosas, inclusive fazendo diminuir a velocidade das águas, além de prover água juntamente com os aqüíferos subterrâneos nos períodos de estiagem relativa e crítica. A destruição das várzeas dá-se também pela eliminação de meandros, páleo-meandros e gamboas, através da retilinização dos canais principais de drenagem dos sítios urbanos.3

Por outro lado, nos sítios urbanos onde a drenagem se dá através de vales encaixados, as vertentes mais instáveis no mundo tropical têm também suas características bastante modificadas seguindo a mesma lógica da mercadorização da terra, da super-exploração do meio ambiente. Terras são trazidas para os vales para expandir as áreas urbanizadas, mas aumentando-se as já acentuadas declividades das vertentes. Muitas vezes, a última rua, ou até mesmo quadras, são construídas nestes aterros inconsolidados, que associados ao trabalho dos cursos d’água que se adaptam ao novo regime do ciclo hidrológico aceleram o arranjo de buscarem um novo desenho do canal, definindo um novo nível de base, novos geometrias das margens que resultam, em última instância, na alta instabilidade destes aterros. A destruição das matas ciliares em ambos os casos acentuam também a modificação do relevo, sujeitando-se canais fluviais a processos erosivos, assoreamentos etc..

Hoje, a situação em muitas cidades brasileiras é catastrófica, pagando-se um pesado tributo, inclusive de vidas humanas, pelo descaso e irresponsabilidade das autoridades públicas na expansão e gestão ambiental das cidades. A renda pecuniária auferida por este processo de urbanização ocupando áreas inadequadas e negligenciando os impactos ambientais é geralmente muitas vezes menor que os custos de sua reparação, em grande parte bastante precários. Isto sem considerar o valor irreparável e perdas humanas e do estresse psico-moral aos seus moradores. Em outra palavras, como muitas vezes já foi denunciado, privatizam-se os lucros e socializam-se os custos, distribuindo desigualmente os ônus e benefícios da urbanização. Este processo ainda ocorre devido à assimetria das forças sociais que atua em favor do poder econômico e em detrimento das populações de baixa renda. Evidencia-se, portanto uma ineficiência econômica sistêmica indo de encontro ao conceito de desenvolvimento sustentável.4 Os problemas ambientais são principalmente, antes de tudo, problemas sociais. Populações marginalizadas do crescimento econômico não têm outra alternativa que procurarem áreas de (mais) alto risco ambiental para construírem suas toscas e precárias moradias.

 

FIGURA 1: Deslizamento em Campo Limpo, na cidade de São Paulo, em área sabidamente de risco, de recente ocupação, com quatro mortes e seis feridos.

Fonte: Folha de São Paulo, 2000: 3-6

Elaboração: Carvalho, P. F. de – 2000

No sul do país, nas estações chuvosas, as enchentes críticas nas áreas urbanas começam cada vez mais cedo. Antes, as inundações nos sítios urbanos davam-se do meio para o fim das estações chuvosas quando o solo saturado com água diminuía a sua capacidade de absorver água e aumentava-se o seu escoamento pelas vias urbanas. Chuvas cada vez menores causam e causarão momentos críticos no meio ambiente urbano. Surgem soluções esdrúxulas, paliativas, de pobre desempenho, como os "piscinões", ou aquelas mais imediatistas como a cobertura de morros com lona plástica para evitar deslizamentos.

 

FIGURA 2: Solução paliativa realizada pela Defesa Civil em morro na cidade do Recife, que muitas vezes, deixa de ser transitória, passando a ter efeitos questionáveis.

Fonte: Jornal do Comércio, 09/01/2000.

Elaboração, Carvalho, P. F. de - 2000

Este processo, é complexo, porque muitas vezes, a gênese é remota no tempo e no espaço. Muitas intervenções, no início, não desencadearam problemas imediatamente, mas a sucessão de ações semelhantes têm um efeito cumulativo e, mais ainda, qualitativo e sinérgico. Outras vezes, as áreas sofrem o impacto de ações antrópicas alhures. Espaços-problema e espaços-solução não correspondem a mesma delimitação. As escalas temporais dos decisores políticos também não tem a mesma delimitação dos problemas e das suas soluções. A questão, o planejamento e a gestão ambiental, então, hoje, demandam uma nova consciência espácio-temporal e, consequentemente, novas delimitações territoriais. Enquanto não há uma ação racional elevada na qual previna-se os impactos ambientais - apesar de uma legislação ambiental de quase duas décadas - os problemas relativos são enfrentados na esfera judicial, geralmente depois de alguma catástrofe na qual vidas humanas foram sacrificadas, como ocorreu recentemente em São Paulo, em março de 2000. A questão ambiental tem que ser transformada em crime de periclitação de vida para ser enfrentada pelo Estado:

Ação exige remoção em áreas de risco

A Promotoria da Habitação e Urbanismo do Ministério Público Estadual entrou ontem com uma ação civil pública, com pedido de liminar, contra a Prefeitura de São Carlos. Na ação, o promotor Carlos Alberto Amin Filho pede que a Justiça determine que a prefeitura realize, em 30 dias, "a remoção de moradores de áreas sujeitas a risco iminente detectadas no laudo confeccionado por encomenda da própria prefeitura".

Amin também solicita que as favelas que ocupam essas áreas de risco sejam transferidas para locais adequados. (...)

O processo do Ministério Público teve início no ano passado, com o objetivo de averiguar as condições de segurança das ocupações consideradas de risco, localizadas na área da Administração Regional do Campo Limpo. Na segunda-feira, um desmoronamento numa favela localizada no Morro da Lua, em Campo Limpo, deixou 12 mortos.

De acordo com o Ministério Público, na região há 32 áreas de risco iminente. (...)

O promotor afirma que há "total omissão do poder público, o qual não possui nenhuma política de afastamento do risco em vigor, o que se arrasta há, pelo menos, quatro anos".

De acordo com a ação "entre 1997 e 2000 praticamente nenhum recurso foi empregado para a execução de obras para o afastamento do risco na cidade".

O promotor também constatou que o número de funcionários na Regional do Campo Limpo para monitorar e trabalhar no afastamento do risco foi reduzido de seis para apenas um.

Outro problema apontado por Amin é a falta de repasse de verbas pela Secretaria Municipal das Finanças para obras de contenção.

Amin contesta, na ação, a afirmação do prefeito Celso Pitta, que disse anteontem que a prefeitura notificou os moradores a deixarem a área. Para ele, a lei "não se contenta com a mera intimação e não crê na eliminação voluntária do risco".

O promotor está convencido de que a ocupação dessas áreas "é o resultado de uma deficiente fiscalização do uso e ocupação do solo, dever imposto à prefeitura".

Amin concluiu o texto da ação afirmando que a persistência do risco "demonstra o quão ineficiente vem sendo a política pública em questão, que se pode afirmar com segurança ser inexistente nestes últimos quatro anos".

Fonte: Folha de São Paulo, 03/03/2000, página 3-9.

 

É necessário no entanto, promover o planejamento e a boa gestão ambiental. A legislação ambiental (Lei 6.766/79, Código Florestal etc..), ainda que possa ser melhorada, se obedecida, poderia evitar a maioria dos problemas ambientais. Outras ações usando o atributo da discricionariedade da administração pública em complemento aos atos de poder vinculado, poderiam ser subsidiadas pela doutrina tão vasta no campo do planejamento urbano e das ciências ambientais. A questão ambiental passa também pela luta de classes, uma vez que o atual modelo de desenvolvimento econômico que causa os problemas ambientais beneficiam certos grupos econômicos em detrimento de outros e da própria sociedade como um todo. Aqueles que sofrem os problemas ambientais serão os mais apropriados para criticarem o atual modelo de desenvolvimento, no qual o modelo de urbanização é uma instância da mesma realidade, e os únicos que poderão também defender a bandeira que estão lutando para o todo da sociedade, geralmente, porém, não devidamente instrumentados. Assim, é preciso desenhar estratégias que façam o poder executivo, legislativo e judiciário exercerem o seu dever de agir segundo o interesse público. Evidentemente, que idéias não se implantam apenas com base na sua racionalidade. Mas na medida que forem absorvidas pela consciência dos cidadãos que devem começar a questionar o absurdo das catástrofes ambientais não como azares naturais e sim, como resultado de ações do homem na natureza, potencializam-se transformações. O quadro abaixo identifica as práticas inadequadas à urbanização e diretrizes alternativas que poderiam ser tomadas como uma agenda para um debate público e acadêmico.

QUADRO 1 – A URBANIZAÇÃO CRÍTICO-INOVATIVA: DIRETRIZES

PRÁTICAS DE URBANIZAÇÃO QUE DEVEM SER EVITADAS:

  1. Ocupação de áreas inadequadas e de risco ambiental.
  2. Ocupação de áreas de preservação ambiental.
  3. Ocupação intensiva de áreas urbanas consolidadas saturando a infra-estrutura urbana e instalada.
  4. Ocupação de áreas livres púbicas e privadas, densificando a urbanização, com economias questionáveis.
  5. Negação do meio natural através da engenharia civil tradicional.
  6. Negação das atividades rurais como incompatível às urbanas e a interação cidade-campo.
  7. Destruição dos recursos hídricos e da drenagem natural, que são vistos como descartáveis ou problemáticos para a cidade.
  8. Solução dos problemas ambientais através de engenharia de alto custo, de precários resultados, como diques, muros de arrimo, canalizações, piscinões etc..
  9. Implantação e expansão da urbanização sem uma visão sistêmica regional.
  10. Alienação da comunidade na construção do seu espaço social, gerando indiferenças entre pessoas e lugares.

ALTERNATIVAS PARA A URBANIZAÇÃO SUSTENTÁVEL:

  1. Adotar o zoneamento geo-ambiental, identificando áreas adequadas em diversos graus.
  2. Conceber as áreas de preservação permanente como nas estrutura urbanas viabilizando a susentabilidade.
  3. Respeitar a capacidade de suporte das zonas urbanas, evitando reformas e tecnologias de altos custos, de eficiência e eficácia questionáveis.
  4. Utilizar espaços livres públicos e privados para minimizar o impacto da urbanização, inclusive através de baixas taxas de ocupação compensadas pela verticalização.
  5. Conceber um desenho urbano que minimize as intervenções e os custos de infra-estrutura urbana.
  6. Incorporar no tecido urbano atividades rurais compatíveis e contributivas à ecologia da vida urbana, aproveitando áreas inadequadas à urbanização.
  7. Adotar uma urbanização que valorize a água como recurso, valorizando desde os pequenos córregos até os grandes rios, dando acesso e uso público dentro da vida urbana, à semelhança das praias.
  8. Aproveitar, na medida o possível, os vetores da dinâmica da natureza, deixando de lutar contra ela, a partir dos micro-espaços.
  9. Incorporar a abordagem do desenvolvimento regional na implantação e expansão dos núcleos urbanos, ou seja, o conceito de região urbana (região metropolitana e aglomeração urbana).
  10. Adotar a participação popular na construção do seu espaço, gerando afetividades com os lugares e as pessoas que nele vivem.

Elaboração: Carvalho, P. F. de - 2000

O "Estatuto da Cidade" adormecia na Câmara Federal desde que foi aprovada no Senado Federal quase uma década atrás. Trata de legislação urbana integrada que procura instrumentar os poderes executivos em suas três esferas para fazer face aos problemas ambientais numa estratégia global abrangendo os aspectos econômicos, sociais e ambientais da construção, expansão e gestão das cidades brasileiras. Em dezembro de 1999, teve o seu processo retomado pela atual legislatura tendo seu texto sido aprovado pela Comissão de Desenvolvimento Urbano e do Interior da Câmara.

A participação popular é de vital importância para uma mudança política nos tratos da coisa pública no Brasil, cuja vertente mais vigorosa inacreditavelmente passa pela mídia, tida como um quarto poder a serviço dos poderes econômicas, com denúncias cotidianas. A cidade pode ser ainda o espaço de contestação das contradições fazendo com que o Estado-nação deixe de ter um papel passivo na globalização. A sociedade está atomizada e acéfala, mas também constrói as novas possibilidades de reorganização através de redes cada vez mais horizontalizadas, viabilizadas por tecnologias da informação como a Internet. Hoje, ante a indiferença de poderes locais quanto aos problemas locais, o munícipe pode fazer valer-se da web e ter voz na imprensa nacional ou em alguma entidade internacional, reconstruindo a sua cidadania em escalas espaciais jamais pensadas. A busca da eficiência na consecução das metas e objetivos é que vai determinar o seu espaço de luta, o lugar de sua cidadania.

 

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1Trabalho que apresenta reflexões e antecipa resultados parciais de pesquisa financiada pelo CNPq intitulada: "Revaliando e Consolidando a Legislação Urbana: o caso da lei 6.766/99 e sua aplicação nas cidades médias paulistas".

2Ver também o trabalho de Felisberto Cavalheiro que trata do mesmo assunto, apud TAUK, Samia (org.). Análise Ambiental: uma visão multidisciplinar. São Paulo, Edunesp, 1991:88-99.

3Os sistemas fluviais no meio rural também são vítimas de ações parciais sob a dominante econômica ao qual é desenvolvida toda uma engenharia. Nesta perspectiva, por exemplo o curso natural do Rio Paraíba já foi considerado inconveniente, pela "elevada quantidade de meandros e uma insuficiente profundidade média", tendo em vista a navegabilidade e o paralelismo da rede rodoferroviária. Assim foi idealizado um pesado projeto hidroagrícola, eliminando 78 meandros, escavando 51 quilômetros de leito novo, reduzindo o trecho de 257 para 167 quilômetros, entre Cachoeira Paulista e Jacareí, no Estado de São Paulo (Revista Técnica e Informativa do DNOS - Saneamento, Ano 31, vol. 51. Rio de Janeiro1977:8-18).

4"A cidade de São Paulo registrou ontem o terceiro maior congestionamento do ano no pico da tarde. Foram 138 quilômetros de lentidão, segundo medição feita pela CET (Companhia de tráfego). (...) Dos seis piscinões que estão operando em São Paulo, um transbordou (Córregos das Pedras, na Freguesia do Ó) e outros dois atingiram o seu limite (Bananal, na zona norte, e Água Espraiada, na zona sul). Os únicos piscinões que não chegaram perto do seu limite de capacidade foram Pacaembu (zona sudoeste), Caguaçu (zona leste) e Limoeiro (zona leste). A CET informou ontem que o córrego Pirajussara, perto da divisa ente São Paulo e Taboão da Serra (Grande São Paulo), era o único que havia transbordado até o início da noite de ontem. A avenida Francisco Morato ficou intransitável por causa do transbordamento do córrego na altura do largo do Taboão." (Folha de São Paulo, 29/02/2000, página 3-6).