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I Fórum de Debates

ECOLOGIA DA PAISAGEM E PLANEJAMENTO AMBIENTAL

 

A DESCONSTRUÇÃO TOTAL DA PRAIA DA FRENTE DA CIDADE DE SÃO SEBASTIÃO (SP) 1

 

FRANCISCO, José 2

1 Primeiros resultados de pesquisa de tese de doutorado sob orientação do Prof. Dr. Pompeu Figueiredo de Carvalho, Livre Docente da UNESP/IGCE - Deplan, Rio Claro (SP).

2 Arquiteto, Professor da UFSCar / Depto. de Enga Civil, São Carlos (SP).

 

INTRODUÇÃO

Os atores da desconstrução da orla sebastianense são a Autoridade Portuária e a Petrobras. O assoreamento causado pelo porto, na Praia da Frente, acaba tornando-a local de bota-fora. Ela desaparece, inicialmente, nos seus extremos. O aterro no restante, acaba por destrui-la totalmente. O cenário natural é objeto de transformações equivocadas. A paisagem cultural não acompanha a magnitude e a beleza da paisagem natural.

A Petrobras não desiste da armazenagem do GLP em cavernas na Serra do Mar, mesmo existindo lei municipal proibitiva. Entendemos a persistência da Petrobras ligada a política de aterros da orla, quando volumosa massa deve ser movimentada. As instalações da Petrobras, além de ilhar o centro, e ocupar parcela significativa da cidade, significam perigo. Ela ficou com as áreas planas restando a Autoridade Portuária ganhar terra ao mar. Massas de dragagem do fundo do canal ou desmanche de morros são viabilizados. Com custos de aterros proibitivos, o programa de expansão física portuária fica refém de iniciativas da Petrobras.

O planejamento e projetos ambientais na orla sebastianense, junto ao centro histórico da cidade, continuam sendo objeto de controvérsias. A PMSS quer agora a construção de uma Marina Pública, na área aterrada defronte a cidade (Prefeitura,1998).

 

1. A MANUALIDADE NA PAISAGEM

A começar pelas mãos – em movimentos já perdidos no tempo – estamos e devemos continuar inexoravelmente a transformar nosso espaço-paisagem.

Dentre os diversos fatores que nos levam ao bipedalismo, a paisagem, deve-se admitir, está sempre presente. No andar ereto ela se descortina. A "quatro mãos", a paisagem, mesmo que exuberante, pouco ou nada "nos" diz: a cara está quase rente ao chão.

De pé vê-se um horizonte maior. Perde-se a maior velocidade "do quadrúpede" (Johanson, et al. 1984), para passarmos simplesmente a andar e, consequentemente, sentir mais e melhor a paisagem.

As mãos livres e a paisagem vêm juntas no bipedalismo hominida. A partir daí o vertical do corpo, conduzido pelas mãos, e o horizontal representado pelo espaço-paisagem, não param de interagir entre si. O trabalho das mãos na paisagem-natureza, inaugura a grande caminhada, cada vez mais consciente, da constituição do humano. A manualidade, entendida de forma ampla (Heidegger, 1995), se consolida como uma fábrica de idéias.

Agora a cabeça planeja, mas são as mãos alheias que executam (Engels, 1953).

A fixação de grupos em pontos escolhidos do território, dá origem a vilas e posteriormente a cidades, como manifestações inequívocas da manualidade consciente na paisagem. Por mais "conseqüentes" que sejam os pensamentos e idéias, só a manualidade des-constroi e trans-forma o espaço. Essa desconstrução antecede a construção, assim como o novo se soma ao velho, deixando uma paisagem novamente à mão.

As paisagens devem ser vividas na sua exuberância de composições de objetos naturais e adaptados. O direito ao espaço-paisagem pressupõe que não só os objetos produzidos mas os homens ocupem um lugar. As mãos calejadas pelo trabalho, nunca vazias, sempre ocupadas, ícones de toda transformação espacial, podem ter papel na desalienação social.

O planejamento ambiental está calcado demais em projetos físico-espaciais onde a ação das mãos prevalece sobre a paisagem existente, transformando-a.

 

2. A DESTRUIÇÃO DA PRAIA

O núcleo urbano principal da cidade de São Sebastião foi o espaço, ao longo do tempo, que teve sua paisagem mais desconstruída, se comparada com os demais núcleos de praias do município. A paisagem natural é transformada sensivelmente, sobretudo a partir da decisão governamental de instalar um porto comercial - na orla sul do núcleo, e um terminal marítimo de petróleo e derivados - ao norte.

Até a terceira década deste século a cidade de São Sebastião ainda tinha seus traços originais preservados. O núcleo urbano ainda era pequeno e acolhedor. A Praia de Frente se desenvolvia numa linha côncava integrada ao sítio histórico, formando uma paisagem atrativa e bela, de onde se vê como "um grande lago entre montanhas" (CGG, 1911) definido pela Ilhabela do outro lado do Canal de São Sebastião.

Em 1973 a Petrobras já tinha dragado a entrada sul do canal. Agora ela necessitava aumentar o calado de dois dos seus berços de atracação de navios no Tebar, PP2 no pier norte e PP3 no pier sul, para, mantendo a profundidade adequada, poder receber petroleiros de última geração. A solução técnica para aumentar-se o calado é a partir da dragagem do fundo do canal e a Petrobras pensa, inicialmente, em lançar o material dragado em alto mar. Previa-se, a remoção de 1.600.000 m3 de material de assoreamento, além do desmanche do morro.

"Primeiro foi feito o enrocamento e depois começou o lançamento, que foi na área sul do porto e em três áreas em frente à cidade (Fig. 1 e 2), mais para atender o volume mínimo que a Petrobras precisaria. Teria que haver uma área para receber um mínimo de volume a ser dragado e, como houve problema com o meio ambiente, de se aterrar a baía toda, a opção foi usar a parte da frente da cidade, mas não para funcionar como área portuária." (Dersa, 1994).

As investidas na direção de projetos de ações antrópicas sejam para evitar o assoreamento da orla ou para se aprender a conviver com ele, como por exemplo a definição de área de mangue com plantio de vegetação junto a foz do Córrego do Outeiro, não foram encontradas. Ao contrário constatamos, além do fraco assoreamento natural causado pela contra-corrente marítima que carrega detritos do Rio Juqueriquerê o assoreamento significativo causado pela ação antrópica das sucessivas obras do Porto de São Sebastião.

Essa política de aterramento da orla, posta em prática, leva a consolidação do Porto Dersa São Sebastião pela ocupação de extensa área, desde o retroporto situado na Baía do Araçá, até a ponte dos dutos do TEBAR - Terminal Marítimo Almirante Barroso.

O governo federal através de uma empresa, da qual é acionista majoritário - a Petrobras - e de uma concessão federal outorgada a uma empresa estadual - a Dersa - para a administração portuária, está acabando por desconstruir atabalhoadamente a paisagem do centro histórico da cidade. Tal fato pode ser notado desde as obras de fundação iniciais do porto (Secretaria, 1941), até o desaparecimento total da Praia da Frente.

Consideradas os diferentes tipos de fronteiras-d’água as praias marítimas são as mais significativas, pela sua exuberância do movimento das águas, proporcionando ao conjunto mutações constantes. As ondas do mar, em contato com as bordas continentais, definem uma superfície, em formato linear, que se adapta as diferentes declividades do local, em função de diversos desenhos de depósitos de areia, com uma largura variável conhecida ao longo do tempo. Esse espaço, parte areia parte água, é conhecido popularmente como praia. O conhecimento da superfície da praia delineada pela água, que passa de geração em geração, faz com que sua borda ou seu contorno em terra, na maré alta, seja utilizado de maneira cuidadosa precavendo-se de possíveis avanços do mar. As praias mudam constantemente de desenho fruto das interações sucessivas entre a "terra" e o mar. Cabe ao homem interagir conscientemente nesse contexto de maneira a tirar partido da paisagem viva que se lhe apresenta.

Tradicionalmente o homem não sabe trabalhar ainda com a água, sobretudo no meio urbano, onde as fronteiras-d´água não são respeitadas. Ela mais serve para transportar dejetos, quando não desaparece sob massas de terra, do que se constitui num elemento plástico de composição da paisagem.

 

3. A DESCONSTRUÇÃO ESPACIAL

"Começo, meio e fim", e "ontem, hoje e amanhã" são duas tríades inseparáveis do trabalho científico quando este trata das questões espaciais. Camadas de espaço-tempo da constatação do hoje é o produto com o qual planejamos e projetamos nosso ambiente. É importante projetarmos novos espaços desconstruindo o mínimo necessário o espaço previamente existente. Da paisagem "natural" e/ou adaptada passamos, através da desconstrução, para a paisagem cultural.

O termo desconstrução ajuda a nos tornarmos conscientes e responsáveis pela destruição do espaço, pela perda do bem preterido e pelo impacto ambiental. Não há construção sem destruição. A reestruturação físico-espacial urbana passa necessariamente pelo espaço desconstruído.

O espaço urbano existente é ocupado, construído, destruído, transformado, habitado, "salpicado de verde", sempre trazendo algo de novo e de diferente como motor dessa nova "construção". O que acontece entre o existente e o novo, chamamos de desconstrução do espaço, ou seja, de espaço desconstruído. Não se trata de novo tipo de espaço, dentre as diversas concepções existentes, mas de começar a entender o espaço que nos cerca a todos, de uma nova maneira, mais abrangente talvez. Os espaços da cidade e do meio rural, por exemplo, são ambos considerados na desconstrução na busca da superação da oposição cidade-campo como preconizada por Marx (1972:95). Considera-se também a "unidade do homem e da natureza" (Marx, 1972:57-63) e com a adoção dessa natureza única estaremos caminhando para o resgate, ao mesmo tempo, da compreensão científica do saber espacial e da totalidade dialética do universo da natureza e da sociedade (Gomes, 1990).

Sabendo-se que a "exploração da natureza pelo homem" se transforma na "exploração do homem pelo homem" (Axelos, 1961), o entendimento e a prática conscientes da desconstrução espacial podem levar a uma dinamização maior dos processos de democratização da sociedade.

Desconstrução é também o processo completo entre o antigo e o novo espaço; é o resgate da consciência da destruição que viabiliza a construção e da identidade destruição-construção.

Achamos que se deve investir na teorização da desconstrução espacial (Quadro 1). A tipologia apresentada, para reflexão, nos dá um panorama esquemático e inicial dos diferentes espaços desconstruídos acompanhados de alguns exemplos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AXELOS, Kostas. Marx penseur de la technique. Paris, Minuit, 1961, p.102.

COMMISSÃO Geográphica e Geológica do Estado de São Paulo. Exploração do Rio Juqueryquerê, 2a ed. São Paulo, (1a ed. 1911), 1919, p.7.

DERSA - Desenvolvimento Rodoviário S/A. Depoimentos, in Documentos em Síntese, no 11, setembro de 1994, p.46.

ENGELS, Friedrich. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem, In: MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas, vol.2. São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1953, p.275.

GOMES, Horieste. A Produção do Espaço Geográfico no Capitalismo, São Paulo, Contexto, 1990, p.17.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo (1), Petrópolis, Vozes, 1995, p.149-163.

JOHANSON, Donald C. & EDEY, Maitland A. Lucy - os Primórdios da Humanidade, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1984, p.435-452.

MARX, Karl. In: MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. L’Ideologie Allemande, Paris, Éditions Sociales, 1972, p.57-63 e p.95.

PREFEITURA Municipal de São Sebastião e IAB - Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento de São Paulo (convênio). Concurso Público Nacional de Idéias para a Implantação de uma Marina e Revitalização do Centro Histórico da Cidade de São Sebastião. (formato brochura) Regulamento, Termo de Referência, Programa Básico para a Marina Pública de São Sebastião, Fotos da Área, Planta Cadastral e de Localização, São Paulo, 1998.

SECRETARIA de Estado dos Negócios da Viação e Obras Públicas do Estado de São Paulo. Obras de melhoramentos dos Portos de São Sebastião e Ubatuba. São Paulo. 1941, p.45.

 

 

Fig. 1 e 2. Flagrantes da desconstrução da Praia da Frente

O aterro do último trecho da Praia começa com a construção do dique de contenção. Ao seu fechamento completa-se com material dragado do fundo do canal, num processo de desconstrução total do espaço previamente existente.

Fonte: Engenheiro Luiz Stéfano, fiscal da obra, junho de 1988.

 

 Quadro 1. ESPAÇO DESCONSTRUÍDO – Critério, Tipologia e Exemplos

Critério

Tipologia

Exemplos

1 natureza da desconstrução

Natural

derrubada de mata ciliar ou galeria, ao lado de cursos d’água; loteamento novo; sucessão de cortes e aterros para a definição do sistema viário de área loteada; construção de lagos artificiais; qualquer tipo de canalização de córregos e rios

artificial

empreendimentos de reflorestamento; reformas e demolições de edifícios

2 pertencer ou

não a área objeto de intervenção

direto

construção de enrocamento de cais de porto

indireto

assoreamento à montante da corrente marítima provocado por obra à jusante; impermeabilização generalizada do solo nas cidades, embora as enchentes aconteçam em pontos determinados; "piscinões"

3 intensidade da

desconstrução

mínima

aplicação de gabiões em trecho de margem de corpo d’água; reforma de edificações; revitalização urbana

máxima

canalização de córrego; demolição de edificações; reurbanização

4 abrangência da

desconstrução

parcial

destruição parcial de mata ciliar; renovação e/ou reabilitação de uma edificação, uma quadra ou área urbana

total

destruição total de mata ciliar em trecho de rio; implosão de edifício

5 localização

rural

derrubada de mata; loteamento de chácaras

urbano

remodelações de jardins/parques públicos; reforma de edifício; loteamentos habitacionais e industriais urbanos

6 tipificação intra-urbana

lote

derrubada de árvores para permitir a edificação; corte e aterro para implantação de projetos; reformas e ampliações residenciais e industriais

gleba

construção de arruamento / loteamento; aterros sistemáticos de pequenos cursos d’água e suas nascentes

7 duração da desconstrução

curta

demolição seguida de nova construção;

longa

demolição não seguida de nova construção; "verdissement"

8 estado de

conservação

não deteriorado

reforma / remodelação de edificações não deterioradas

deteriorado

reforma / recuperação de edificações deterioradas; intervenções em áreas degradadas (zonas portuárias, industriais, áreas aterradas)

9 existência de ocupação /uso

não ocupado

vilas operárias desabitadas em fazendas; terras sem uso definido; "terra improdutiva"; prédios industriais e residenciais desocupados; "vazios urbanos"

ocupado

remodelações / ampliações e / ou obras de conservação de espaços ocupados

10 existência de construção

não construído

obras de loteamento e arruamento; implantação de parque urbano linear ao longo de corpo d’água

construído

ampliação de edificação; plantio de arborização urbana

Elaboração: FRANCISCO, José – 1999.